Eu estaria presumidamente morto se soubesse de tudo o que viria a ocorrer nos próximos instantes
Eu não sou o sujeito mais indicado para falar de empreendedorismo: não sou celetista, muito menos empresário, e minha exposição financeira no mercado de capitais além de parca, está muito aquém do que eu chamaria de "arriscada". Tome, portanto, este escrito como um mero devaneio. Disclaimer dado, vamos a ele.
Quando eu era adolescente, via meu pai - então autônomo prestes a se aposentar - fazer de um tudo para que eu e meus irmãos aprendêssemos a empreender. Tínhamos uma chácara e nela fizemos várias culturas. Graças a isto, eu aprendi muito cedo o conceito prático de empreendedorismo e como ele se baseia no risco. Também aprendi como os derradeiros fracassos eram cruciais para que o sistema fizesse uma espécie de autofagia e se mantivesse mais resistente ao longo do tempo. A primeira versão do empreendedorismo familiar consistia de uma criação de frangos, uma granja que tinha alta demanda e que majoritariamente fornecia à prefeitura local. A primeira lição: concentração de demanda é um elo fraquíssimo, portanto o mais provável ponto de ruptura do sistema. Posteriormente, a criação de hortaliças. Esta, com a demanda menos concentrada, tinha outro elo fraco: nunca se sabe quão lucrativa será uma safra, tampouco quão grande ou pequena será sua demanda. Na maioria das vezes, a relação era inversamente proporcional: nos períodos de calor, a demanda crescia e a safra rendia menos. Nos períodos de frio, a demanda crescia e o clima, na maioria das vezes, favorecia para uma safra mais farta. Depois veio suinocultura e a criação de aves soltas. Este combo ocorria por mera conveniência: as aves se alimentavam dos dejetos dos suínos, que evidentemente tinham o metabolismo exacerbado deficitário e não digeriam uma grande parcela do milho. O elo fraco: um misto de concentração de demanda, oscilação da precificação da arroba suína, do milho, da soja, do mineral e claro, da fiscalização que amedrontava os açougueiros.
Em resumo: no que quer que façamos, haverá provas, divergências, acertos e erros, e o somatório disto tudo definirá que o empreendimento é ou não sustentável. Não sendo sustentável, mudanças precisarão ser feitas. Tomemos por exemplo os restaurantes em uma cidade. Todo cliente procura por refeições saborosas e baratas, ao mesmo tempo. Eventualmente, um restaurante terá mais clientes do que outro, e alguns restaurantes eventualmente irão falhar e baixar suas portas. Como a clientela só tende a crescer, isto significa que o fechamento de um restaurante favorece a abertura de outro maior que o primeiro. Se o próximo a aventurar-se naquela clientela não cometer os mesmos erros, ele triunfará. Isto nos diz que observar os erros (em vez de evitá-los) é o que torna um componente do sistema mais resistente à falhas. Se todos os restaurantes fossem idênticos, bastaria um diferente para desbancá-los todos. O que significa que, além de aprender com os erros, fornecer algum diferencial nunca será uma má ideia.
Estamos na era das startups e uma enorme parcela dos produtos oferecidos são intangíveis, de modo que a criatividade conta mais do que sempre contou. Para que um unicórnio* nasça, muitas dessas startups precisaram ser sepultadas. Se por um lado o concreto padece, a informação jamais se perde. Se os Wright Brothers não tivessem fracassado inúmeras vezes, hoje não teríamos como cruzar o atlântico em questão de horas. Se nosso organismo não fizesse autofagia, provavelmente não sobreviveríamos mais do que algumas horas após o nascimento. Se uma estrela não se implodisse culminando em uma supernova, nosso sistema solar não existiria. A destruição, o caos e a desordem são pontos essenciais no processo de criação desde que o universo existe. É super válido ter isto em mente ao arriscar-se num empreendimento novo, porque as chances de falhar são estatisticamente maiores do que de triunfar, mas o que realmente impede o sucesso, é a desistência. Imagine se o seu calcanhar não ficasse mais espesso ao caminhar descalço, ou então imagine se nossos ossos e nossos músculos não se fortalecessem ao exercitá-los. Assim como eles são, deve ser o empreendedor.
A bem da verdade, estamos aplicando a regra em empreendedorismo no contexto mercantil, mas a regra é aplicável para qualquer que seja a esfera da vida. Vejamos então como isto se aplica em alguns exemplos de casos fatídicos e, ainda, como eventualmente coisas surpreendentemente positivas podem advir da mesma aleatoriedade que estamos buscando ao rechaçar o intervencionismo ingênuo.
A LIBERDADE SUÍÇA
A Suíça é listada entre os países de maior liberdade econômica no mundo. Vale dizer, ter mais liberdade econômica implica ter menos intervenção estatal na economia, portanto maior exposição a riscos. Tomemos de volta o exemplo dos restaurantes: se aqueles que viriam a falir tivessem respaldo do governo, jamais aprenderiam - tanto eles como outrem - com seus erros, tornando o sistema tristemente vulnerável. Aberrações como esta não ocorrem na Suíça porque o governo não intervém. Na verdade, dizem que é mais fácil um cidadão suíço saber o nome do presidente dos países vizinhos do que o dele próprio. O exemplo da Suíça é ótimo porque ele sintetiza a nossa relação com os antibióticos: se houver exposição do recém nascido, ele terá resistência imunológica tal que passará a vida inteira sem sequer precisar de um antibiótico. Infelizmente, a recíproca é verdadeira. E em contraste com a Suíça, o Brasil está com a recíproca.
A ESCOLA INFANTIL NA HOLANDA
Em Noordlaren havia uma escola infantil cujo parque diversões era adjacente a uma via de tráfego, havendo apenas uma mureta que os delimitassem. Em algum momento, um acidente ocorreu devido à perigosa distância em que as crianças se concentravam no parque e o igualmente perigoso deslocamento veloz dos veículos. Evidentemente alguma intervenção deveria ser feita, mas ela não poderia ser ingênua o bastante para que desse uma falsa impressão de segurança. Mas o que poderia ser considerado uma intervenção ingênua? Bem, poder-se-ia alongar a mureta, tornando-a mais alta, mas que segurança um muro mais alto tende a adicionar quando na verdade sua altura nunca foi o real problema? De fato, a solução encontrada pela engenharia de tráfego foi algo bastante inusitado para um olhar ingênuo: em vez de alongar o muro, ele foi completamente removido e o parque foi estendido para cima do tráfego. Não, você não entendeu errado: os veículos agora trafegam junto às crianças! O pressuposto foi de que, tornando o espaço entre motoristas e crianças compartilhado, ocorreriam dois fenômenos altamente fortalecedores no sistema: 1) os motoristas estariam mais atentos com o perigo iminente, o que fatalmente aumenta a segurança e 2) as crianças, ao conviver desde cedo com o trânsito, estariam mais preparadas para lidar com ele. A somatória das hipóteses tornou o problema resolvido e ao mesmo tempo trouxe uma cultura mais resistente à falhas no contexto da convivência inevitável entre pedestres e motoristas. Se ainda acha a ideia absurda, note que nos calçadões de grandes cidades esse convívio dentro do espaço compartilhado entre pedestres e motoristas é deveras comum e mostra um índice de acidentes baixíssimo.
A EXPOSIÇÃO DO GSM
A menos que você tenha nascido após 2010, conhece a tecnologia de sistemas celulares GSM. Como a primeira tecnologia de rede celular digital - não raro, referenciada como de segunda geração, já que a primeira era analógica - foi a mais utilizada no mundo em meados de 2010. Visto que as comunicações eram digitais, uma codificação para proteção da privacidade dos usuários era necessária. Inicialmente fechados - por fechados, quero dizer, são códigos de programação que só podem ser vistos e alterados por quem os detêm -, os algoritmos usados nessa codificação eram tidos como seguros e confiáveis, até o momento em que seu código foi aberto. A partir daí, várias brechas de segurança foram descobertas e, com o avanço das tecnologias, o GSM naturalmente perdeu lugar a seus sucessores. O fato crucial é que, dentre os algoritmos de codificação mais usados na atualidade, inclusive para proteção de transações monetárias e autenticação de credenciais em pontos altamente críticos, foram naturalmente escolhidos os algoritmos de código aberto: sua exposição - tanto a pessoas bem-intencionadas como mal-intencionadas - permite que falhas sejam descobertas e corrigidas, ao passo que em algoritmos fechados o lapso que ocorre nas brechas zero-day até a sua correção podem causar efeitos devastadores na economia mundial. Veja, ninguém pode garantir que um lago é seguro e livre de jacarés até que tenha caminhado por toda a água.
A NATUREZA CIENTÍFICA
De tudo o que você sabe sobre a ciência, decerto que o que mais está exposto ao seu conhecimento é de que todas as teorias existentes passaram por longos períodos de exposição à comunidade científica e que foram testadas e contestadas até dizer chega. Além disso, muitos fracassos foram necessários até que uma hipótese pudesse ser digna de que cientistas a incluíssem em seu rol de prospectos. Albert Einstein não desenvolveu a Teoria da Relatividade do dia para a noite, é o que quero dizer. Mais de um século depois dela, várias descobertas não só a ratificaram, como também foram passíveis graças à ela. E não é só isso: grandes descobertas, nos mais diversos campos de atuação, vieram não de grandes tentativas, mas sim da exposição a percalços completamente aleatórios, como foi o caso do navio americano que transportava gás-mostarda e foi bombardeado pela Alemanha em 1942, tendo ele como tripulantes alguns soldados doentes da leucemia e que vieram a ter reações interessantes da exposição ao gás. Isto foi um grande contribuinte para o desenvolvimento da quimioterapia.
LEI DE WOLFF
Quando um cosmonauta passa muito tempo sob nula ou baixíssima aceleração gravitacional, digamos, numa estação espacial com velocidade média logo abaixo da velocidade de escape Terrestre, seus ossos perdem densidade e ficam muito fracos, forçando o cosmonauta a ser submetido a um processo de reabilitação quando de seu regresso ao planeta-natal. Felizmente, a recíproca é verdadeira: ao submetermos nossos ossos a condições severas, a pressão mecânica a eles aplicada os deforma e tal efeito faz com que novas células células ósseas sejam criadas para preencher as deformações. Se você quer ter ossos fortes, precisa expô-los ao risco. Uma vez quebrados, eles se regenerarão.
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O que quer que planeje fazer, com quem planeje fazer, onde planeje fazer e quando planeje fazer, empurre ladeira abaixo, corte as cordas, pule de ponta. Abrace o caos, acolha o fracasso, aceite o incômodo, interiorize a frustração e procure devolver uma versão melhorada, mesmo que sutilmente. Ao achar que as coisas dão sempre errado, talvez seja o caso de refletir se está focando demais nos resultados almejados e negligenciando os riscos ou focando só nos riscos e não nos aprendizados. Você quer que seus ossos fiquem fortes, quer pressioná-los, arriscá-los, mas não necessariamente quebrá-los. Não há evidências de que um osso quebrado fica mais resistente a cada fratura, só que um osso sistematicamente pressionado tende menos a fraturar.
Ostras transformam desconfortos em pérolas.
Unicórnio: pequena empresa que, em um curto espaço de tempo, atingiu valor de mercado de 1 bilhão de dólares.